sexta-feira, 10 de junho de 2016

Casa

   Ando a adiar as cartas que deixaram, o vazio da porta nua e a casa vazia.
   Ando a adiar a minha própria despedida, como se fosse sempre voltar ao lugar estranho que se tornou a minha casa.
   Ando a adiar como adiava responder-vos às mensagens que mandavam a perguntar se estava bem e se previsava de jantar, quando já estava a subir a rua e me iam ver dali a minutos.
  Ando a adiar porque tenho a cabeça cheia de coisas menos dolorosas do que dizer adeus.
   E quando o vazio que sinto se afirma cá dentro, eu encho-o com porcarias banais.
   Mas quando chegar a casa e não tiver uma mesa cheia e pessoas para chatear, vão ressoar os fados de Coimbra que ouvimos juntas e a saudade vai obrigar-me a dizer adeus.
   É bonito olhar para aquilo que construímos. Um lar de confiança e de riso, que cresceu do zero. Escolhi esta foto e não uma nossa por isso - porque estas luzes são as lanternas que espero que sejam sempre na minha vida e, do outro lado das portas, o calor que nos habituámos a criar. 
   Sei tudo sobre despedidas e nenhuma delas é fácil. A nossa não é exceção. Mas deixo aqui escrito que a minha porta está sempre aberta para vocês e o meu frigorífico cheio para vos alimentar e o meu ombro livre para chorarem e umas tontices para rirmos juntas.
   
Obrigada por tudo. 

domingo, 15 de novembro de 2015

Paris de França, Paris do mundo.

    Não podemos ser quadrados num mundo redondo.
   Não podemos limitar-nos à direita, nem à esquerda, nem sequer ao centro.
   Não é segredo que os tempos são atribulados, são imprevisíveis, são de medo. A informação passa a correr, as críticas a voar e damos por nós a franzir o sobrolho ao ler as opiniões de pessoas que julgávamos pensarem outras coisas. Temos de aprender a lidar com isso e a ultrapassar as barreiras que ter informação imediata causa. Criar guerras com as pessoas que gostamos é um ato de egoísmo em relação às guerras que são criadas entre as pessoas que se odeiam. Essas sim, precisam da nossa atenção.
   Foi a uma sexta-feira, 13 de novembro de 2015, que se deu um massacre na capital francesa que levou à criação do hashtag "pray for paris" e fotos de perfil às riscas. Isso e todo um livro anti-refugiados.

      1.
   Esta sexta-feira não foi obra de deus nem mesmo do diabo. Foi obra humana e da falta de civismo. Rezar não muda mentes, muito menos dizer que o fazem. Pôr uma foto de perfil no facebook às riscas também não muda o que aconteceu nem impede que volte a acontecer. Não me parece que os jihadistas pensem "hum, que poder que têm estes sorrisos felizes com as cores da bandeira francesa... vamos lá parar com esta merda que isto já atingiu os limites!". Eu também não sei o que fazer! Mas assumo que não sei, porque viver na hipocrisia de escrever no facebook que rezo por eles quando sou ateia não faz sentido para mim! Mesmo que fosse crente, para quê rogar a uma pessoa que olhe por eles quando ela mesma fechou os olhos àquilo que desencadeou tudo isto? Talvez Alá lhe tenha posto uma burka ao contrário...

      2.
   Por outro lado, culpar refugiados é... estúpido. Vendar os olhos com a trama da conspiração é tão mais fácil do que ver a realidade, mas tão mais ridículo. Não sei se sabem, há nações em guerra no planeta em que vivemos, que se chama Terra, que vai para além da Europa, dos Estados Unidos e de um ou outro destino com paisagens apelativas. Nessas nações, vivem pessoas inocentes. Têm sentimentos, têm filhos, têm amor. Se fossem vocês, diriam "sim, filho, ficamos por aqui, O clima é tão bom, temos música tecno a toda a hora, estamos sempre a mudar de casa e a fazer exercício físico enquanto corremos de um lado para o outro à procura de um lugar seguro...". Diriam? Não me parece. Porque vocês são as pessoas que, se ficassem desempregadas, iriam a fugir, com o rabinho entre as pernas, para um país europeu mais próspero. E não gostariam de ser culpados nem pelo aumento de lixo nas ruas, quanto mais por um massacre humano. É muito mais grave do que isso, os refugiados fogem da guerra. Fogem para um país que possa oferecer uma qualidade de vida mínima aos seus filhos, que lhes possa oferecer vida. Mais uns milhares de milhões de batimentos cardíacos, nem é de euros. Lamento informar-vos de uma coisa - os macacos que matam pessoas, da mesma maneira que arranjam forma de o fazer, arranjam forma de entrar pelos países dentro. Não precisam de fluxos migratórios.

      3.
  Por fim, aqueles que criticam o protagonismo de Paris em relação aos outros acontecimentos sangrentos fora dos nossos limites territoriais - têm razão, mas só até um certo ponto. É verdade que o desleixo que existe em relação a esses assuntos, assim como a falta de informação, são assustadores. Isto deve ser consciencializado e mudado. Mas acham que isso é razão para dar menos protagonismo ao que aconteceu em França? Ficam tão tristes se morrer o irmão do vosso amigo como se fosse o vosso irmão a morrer? Na vossa própria casa? Não me parece.
Temos direito ao luto, temos direito à agitação. Isto aconteceu inesperadamente num cenário de paz mais perto do que nunca da nossa própria casa. Tem protagonismo.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Luaty Beirão

   A história repete-se.
   Não ciclicamente, mas a história repete-se.
   Talvez apenas simbolicamente, mas a história repete-se.
   Por vezes não no mesmo lugar, mas faz-se de novo.
   Há 50 anos, vivíamos numa ditadura. A liberdade era sonho, o sonho era tabu.
    Entre tantas, morreu uma pessoa que ergueu o punho, mostrou o peito e lutou. O povo soube, o povo olhou-o e o povo escondeu a cara enquanto o herói expunha a alma. Humberto Delgado morreu a 13 de fevereiro de 1965, dando a morte pelos seus ideais e pela pátria sã que acreditava possível. Deu a morte porque a vida ofereceu-a aos capitães de abril que, quase 10 anos depois, cumpriram a sua vontade e a dos outros que não souberam gritá-la.
   Luaty Beirão, aos 26 dias de outubro de 2015, atravessa o seu 36° dia sem comer, desta vez por opção. Alimenta-se da esperança, alimenta-se da vontade que tem de ver os seus compatriotas erguerem-se perante a injustiça de serem calados.
E eu pergunto-me como é que nós, depois de 41 anos, 6 meses e 1 dia de democracia, conseguimos ficar parados. Qual a nossa desculpa? Qual o nosso direito? O nosso exercício de dever?
A história repete-se. Os erros são uma escolha. Quem os comete à imagem do passado é munido de uma falta de inteligência que o futuro não perdoa.
Façam mais porque podem. Assinem a petição porque devem. Ajudem a libertar Luaty porque  Humberto Delgado basta um.

http://www.amnistia-internacional.pt/index.php?option=com_wrapper&view=wrapper&Itemid=40&sf_pid=a077000000TcpJGAAZ

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Canto

I

   Nós tínhamos um canto vazio em casa, junto ao leitor de vinis, que enchíamos com o nosso corpo abraçado - sim, os dois num só - enquanto a música fazia as lides. Mesmo que houvesse vezes em que a ouvíssemos um sem o outro, todo o dia chegava a hora em que o trinco da porta ressoava o sorriso que, daquele ângulo, conseguíamos ver  chegar pelo corredor, e encontravamo-nos no canto sem nada lá de casa, para o enchermos de alguma coisa - o nosso silêncio cúmplice, a partilha das horas que passávamos separados ou o pézinho de dança com que o recém chegado agitava o preguiçoso.
   Naquele canto da casa deitámo-nos em tantos cantos um do outro que não posso dizer que não te saiba do princípio ao fim. Naquele canto da casa limámos as arestas que fizeram de nós sólidos, encaixando-nos no canto que era o nosso. Naquele canto da casa rimo-nos do nada que tanta piada nos dava e rebolámos em gargalhadas de tudo. Naquele canto da casa, chorámos sobre os nossos ombros nus as tristezas e devaneios e limpámos com sorrisos as lágrimas que ainda não tinham transbordado dos olhos. Vimos a chuva escorrer pela janela, enrolados em livros; vimos o frio embaciar o vidro, enrolados em mantas; e vimos o calor desabrochar flores, encostados à parede refrescantemente nua do nosso canto sem nada.
   O nosso canto vazio estava cheio de clichés e de verdades e no chão morava um banco em que nos sentávamos a falar de amor.
   No nosso canto vazio vivia um barco à vela que tantas vezes navegou ao sabor do vento e que noutros dias tivemos de remar com a força do amor que nunca escasseou. O barco que, mesmo depois das tempestades, permaneceu acolhedor como só ele.
   À volta do canto vazio da nossa casa, toda ela desnuda a princípio, cresceu o lar que durante os anos o dinheiro comprou. E todas as compras que fizemos foram parar a tantos sítios que não o nosso canto, porque ele era intocável ao mundo. No nosso canto entrávamos nós e eramos nós a mobília e o recheio que unicamente precisava.

II
 
   Hoje, sentada no nosso canto, encostada à mesma parede nua e fria, nunca me senti tão sozinha. O nosso canto nunca esteve tão vazio. No entanto, está tudo no mesmo sítio. O leitor de vinis aqui perto, a vista limpa para a janela e para o corredor, a casa que criámos.
   Já chorei todas as músicas que costumávamos ouvir e, no silêncio, imaginei ouvir o trinco da porta a ceder ao inevitável destino que somos nós dois juntos. Mas não vens.
   Ecoa-me na mente a conversa que evocaste no sofá, à falta de coragem para a mencionares no canto, e pego nos remos e tento levar o barco para a costa, enquanto deito a cabeça nos meus joelhos e agarro o cabelo com as mãos e o puxo, em busca de uma dor que seja maior que a de não te ter. E não encontro.
   Choro sozinha no nosso canto sem nada, à espera do que não vem, numa casa que já foi a nossa.
 
   No meu corpo, mora um canto sem nada, onde já não vives para o preencher. Tenho um canto vazio na alma, que me pesa tanto no âmago, e que eu já não sei o que hei de fazer para encher.
   No meu corpo vazio mora uma imagem de ti, sentado no canto à minha espera, que todos os dias rasgo em pedacinhos pequenos para destruir a esperança de alguma vez te recuperar.
   De todas as vezes que rasgo essa imagem, maior e mais vazio fica o canto de nada que mora no meu corpo.
 
   Nós tínhamos um canto vazio em casa onde, depois de ele ter migrado para o meu corpo, pus uma cadeira em que nunca me sentei.
 

sábado, 25 de abril de 2015

Viva a liberdade.

   Hoje festeja-se a liberdade.
   Festeja-se a vontade de muitos, festeja-se a coragem dos poucos que se fizeram suficientes e festeja-se uma vitória sem perdas.
   Hoje, mais do que em qualquer outro dia, é dia de nos orgulharmos de Portugal. É dia de pregar um cravo no peito, erguer o punho e cantar todas as canções que não nos deixaram cantar antes.
   Hoje é dia de descer a avenida homónima do estado de alma, é dia de tradições e amigos.
   Este dia é nosso. Somos todos capitães de abril se o quisermos ser.
   Se fosse Camões ou Pessoa, louvava a minha pátria até florescerem cravos nos olhos de cada português, até que de cada palavra fosse feita uma música de revolução.
   Não há revolta mais bonita do que a nossa.
   Fiz-me fruto de 25. Sou filha da liberdade. Sou neta de abril.
   Hoje festejo-vos.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Condições Adversas

Se o amor salva, tenho andado em perigo.
Se o amor cura, tenho andado doente.
Porque não há no mundo
Amor suficiente
Para substituir o teu.

Se o amor permanece, tenho andado ausente.
Se o amor mima, tenho andado carente.
Porque não há no mundo
Amor tão quente
Como o teu corpo sobre o meu.

Se o amor vence, tenho sido derrotada.
Se o amor atenta, tenho sido ignorada.
Se o amor ilumina, tenho andado apagada.
Porque não há no mundo
Igual chama ateada
Como no fogo que arde em beijo nosso.

Se o amor grita, tenho andado surda.
Se o amor amolece, tenho andado bruta.
Se o amor unifica, tenho andado puta.
Porque não há no mundo
Qualquer procura
Que te encontre no corpo de outro homem.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Passeios

   Vou passando pelos passeios pisados e, gastos de tantos passados, os passeios cansados falam para mim. Até parados os passeios se cansam. Cansados de tanto passados, loucos de tantos passeios, tantas vezes passamos passeado sobre passeios saturados dos nossos próprios passos... e nem reparamos, pois não?
   Só hoje, enquanto passeava, sentindo-me mais pisada que os passeios, os ouvi. Enquanto descalça pisava a rua, chorando as minhas próprias pedras, consegui ouvir os passeios chorarem as pedras da calçada.
   Percebi então que só ouvimos o que nos dizem quando o queremos dizer também.
   Chorosa por mim e pelos passeios que comigo choravam, dei-lhes descanso dos passos que os pisavam e deitei-me sobre eles.
   Sob o eco dos passos que não dava, pensei "só queria que soubesses o que não te posso dizer". Mas enquanto não caminharmos os mesmos passeios, não poderemos ouvir o choro das mesmas pedras.