sexta-feira, 1 de maio de 2015

Canto

I

   Nós tínhamos um canto vazio em casa, junto ao leitor de vinis, que enchíamos com o nosso corpo abraçado - sim, os dois num só - enquanto a música fazia as lides. Mesmo que houvesse vezes em que a ouvíssemos um sem o outro, todo o dia chegava a hora em que o trinco da porta ressoava o sorriso que, daquele ângulo, conseguíamos ver  chegar pelo corredor, e encontravamo-nos no canto sem nada lá de casa, para o enchermos de alguma coisa - o nosso silêncio cúmplice, a partilha das horas que passávamos separados ou o pézinho de dança com que o recém chegado agitava o preguiçoso.
   Naquele canto da casa deitámo-nos em tantos cantos um do outro que não posso dizer que não te saiba do princípio ao fim. Naquele canto da casa limámos as arestas que fizeram de nós sólidos, encaixando-nos no canto que era o nosso. Naquele canto da casa rimo-nos do nada que tanta piada nos dava e rebolámos em gargalhadas de tudo. Naquele canto da casa, chorámos sobre os nossos ombros nus as tristezas e devaneios e limpámos com sorrisos as lágrimas que ainda não tinham transbordado dos olhos. Vimos a chuva escorrer pela janela, enrolados em livros; vimos o frio embaciar o vidro, enrolados em mantas; e vimos o calor desabrochar flores, encostados à parede refrescantemente nua do nosso canto sem nada.
   O nosso canto vazio estava cheio de clichés e de verdades e no chão morava um banco em que nos sentávamos a falar de amor.
   No nosso canto vazio vivia um barco à vela que tantas vezes navegou ao sabor do vento e que noutros dias tivemos de remar com a força do amor que nunca escasseou. O barco que, mesmo depois das tempestades, permaneceu acolhedor como só ele.
   À volta do canto vazio da nossa casa, toda ela desnuda a princípio, cresceu o lar que durante os anos o dinheiro comprou. E todas as compras que fizemos foram parar a tantos sítios que não o nosso canto, porque ele era intocável ao mundo. No nosso canto entrávamos nós e eramos nós a mobília e o recheio que unicamente precisava.

II
 
   Hoje, sentada no nosso canto, encostada à mesma parede nua e fria, nunca me senti tão sozinha. O nosso canto nunca esteve tão vazio. No entanto, está tudo no mesmo sítio. O leitor de vinis aqui perto, a vista limpa para a janela e para o corredor, a casa que criámos.
   Já chorei todas as músicas que costumávamos ouvir e, no silêncio, imaginei ouvir o trinco da porta a ceder ao inevitável destino que somos nós dois juntos. Mas não vens.
   Ecoa-me na mente a conversa que evocaste no sofá, à falta de coragem para a mencionares no canto, e pego nos remos e tento levar o barco para a costa, enquanto deito a cabeça nos meus joelhos e agarro o cabelo com as mãos e o puxo, em busca de uma dor que seja maior que a de não te ter. E não encontro.
   Choro sozinha no nosso canto sem nada, à espera do que não vem, numa casa que já foi a nossa.
 
   No meu corpo, mora um canto sem nada, onde já não vives para o preencher. Tenho um canto vazio na alma, que me pesa tanto no âmago, e que eu já não sei o que hei de fazer para encher.
   No meu corpo vazio mora uma imagem de ti, sentado no canto à minha espera, que todos os dias rasgo em pedacinhos pequenos para destruir a esperança de alguma vez te recuperar.
   De todas as vezes que rasgo essa imagem, maior e mais vazio fica o canto de nada que mora no meu corpo.
 
   Nós tínhamos um canto vazio em casa onde, depois de ele ter migrado para o meu corpo, pus uma cadeira em que nunca me sentei.
 

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